12.2.10

Rei destronado

A vasta extensão de areia e as divertidas construnções coloridas não eram apenas um parque para as crianças de um bairro de classe média bem localizado. Para seus usuais habitantes, era um reino. Um próspero reino de areia, com não só um, mas vários reis.

Com suas coroas de lama e de arranhões, um grupo de mais ou menos cinco garotos moleques era quem comandava o povo do reino de areia do alto de sua castelo aramado. Eram reis, pois se comportavam como reis e eram admirados como tais. Ousados, eram os únicos que desafiavam escalar a construção aramada até o topo, a qual conquistaram e a transformaram em seu castelo. As demais crianças, o povo desse reino, os respeitavam por suas intermináveis demonstrações de coragem e pelo carisma incontestável de suas ações, mas também os temiam - elas conheciam bem o autoritarismo de seus monarcas. Qualquer um que desobedecesse aos reis moleques era banido do reino de areia e condenado a passar o resto da infância nos bancos da praça, ao lado das babás com bebês chatos e chorões.

Guilherme não era rei. Tímido, franzino e frágil, não possuia, como os outros, uma coroa feita pelas marcas da molecagem. Possuia, na verdade, um cabelo de cuia, cuidadosamente cortado por sua avó nos finais de semana, e roupas impecáveis, as quais a mãe insistia para que não as sujasse ou rasgasse. Era avesso às farras e às aventuras do povo do reino, e preferia a solitária companhia de seu videogame portátil a compartilhar a gangorra com qualquer uma das outras crianças. Tais caractéristicas o fazia ser lembrado mais como um melancólico bobo da corte do que como um rei. Passava o dia mudo, observando e invejando os reis.

Certa vez, Guilherme desafiou escalar o castelo aramado. Queria ele mostrar que poderia ser rei também. Mas escorregou assim que tirou o segundo pé do chão, e se espatifou na areia, para o divertimento de todos que viram a cena. Os reis riram e apontaram, afirmando sua condição: Guilhereme era apenas um bobo da corte, nunca poderia ser rei.

No final de uma tarde de Carnaval, Guilherme foi visitar o reino de areia , acompanhado pela sua solidão. Nem o povo, nem os reis estavam lá. O reino estava abandonado. O menino magrela e sem arranhões era o único naquela vasta extensão de pó amarelado.

Sentou-se em um balanço e pôs-se a mover lentamente, enquanto observava o castelo a qual um dia desafiara sem sucesso. O castelo aramado, de onde os reis a tudo comandavam. Completamente só, a idéia de escalar o castelo voltou-lhe à mente. Era carnaval, lembrou ele. Carnaval: quando os bobos também podem virar reis.

Em um pulo, saiu do seu entediante balançar e se agarrou à armação de metal do castelo. Começou a escalada, com receio. Prendia-se nas barras com toda a força que tinha em seu frágil corpo e escalava rumo ao topo. Queria ficar cada vez mais longe do chão, daquele ingrato chão do qual nunca saíra. Queria sentir a briza do topo daquele castelo. Queria sentir a liberdade que um dono do mundo sente. Queria ser rei, rei daquele reino de areia. Era carnaval, lembrava, ele também poderia ser rei. Prendeu-se a uma barra vermelha e, num impulso, chegou ao topo. Guilherme conquistara, enfim, o castelo aramado. Em uma tarde de carnaval, o bobo tornou-se rei.

Maravilhado, observou o reino o qual agora era dono. A vasta extensão de areia, as constuções coloridas, os bancos da praça, as árvores e até mesmo a distante banca de jornal: tudo aquilo pertencia a ele, o ex-bobo e agora rei coroado.

Contagiou-se pela briza do topo do castelo e por sua recém-adquirida coragem. Coragem esta que o permitira ser rei numa tarde de carnaval. Pôs-se a gritar, a berrar, a urrar. Exclamava sua ousadia, sua afirmação de monarca. Era dono do mundo, era dono do reino de areia. Dançava. Dançava contagiado pela sua conquista e pela sua liberdade. E na dança, desequilibrou-se. Desequilibrou-se e caiu.

Num baque surdo, Guilherme voltou ao pó. Ao pó amarelo, das areias do parque. Ao pó a qual sempre pertencera. Voltou a ser ao que era: um bobo melancólico, agora estirado ao chão de areia. Mas fora rei. Um rei feito numa tarde de carnaval, e destronado pelo seu castelo aramado.

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8.2.10

Cabelos vermelhos

Num bar aqui perto trabalhar uma senhora com cabelos ridículamente avermelhados. Ela já deve ter lá seus 50, ou quase 60 anos, mas ela continua mantendo os cabelos curtos, repicados e ridiculamente vermelhos.

Sempre que nos sentamos na mesa do bar, nós acenamos diretamente pra ela, pedindo para que venha nos atender. Ela olha em nossa direção e, mesmo com o seus óculos de grossas lentes (que tornam seus olhos exprimidos em duas bolas neuróticas), ela não nos vê. Ela olha e não vê. Quando finalmente conseguimos fazer com que ela venha até a mesa, após muito esforço, ela parece também não nos ouvir. Repetimos o pedido: Cerveja, obviamente, e da mais barata. Ela acena com a cabeça e volta para dentro do bar. E lá fica, sem se mover, observando o magnífico nada que se encontra no horizonte. Esqueceu-se completamente dos sedentos por álcool que se encontram a alguns passos adiante.

A verdade é que aquela senhora me entretem. Me diverte, de verdade. Ela parece viver num mundo mais irreal que o meu próprio. Toda vez que a vejo observar o nada, apoiada em algum canto com seus cabelos vermelhosamente ridículos, ponho-me a imaginar como aquela senhora realmente é, além dos seus surdos acenos de cabeça e de seus cabelos (que, como já disse, são vermelhos, e ridículos).

Imagino a sua casa, como seria. Ela deve ter um daqueles relógios cafonas pendurado na parede. Um daqueles relógios enfeitados com passarinhos de várias espécies, em posições harmoniosas e perfeitamente poéticas para um louco. Deve também ter uma mesa, encostada estratégicamente no centro da parede da sala, repleta de diversos tipos de estatuetas barrocas talhadas em madeira, as quais julga serem bastante atraentes pois ignora a dualidade agonizante em que há nas tais peças. Suponho que as paredes sejam amarela. Um tom claro de amarelo... Amarelo-nicotina. O tapete redondo no centro da sala fora escolhido em uma feira hippie por ser o mais colorido e o mais odioso. Não há TV, nem rádio. Há apenas uma pequena estante no canto com alguns poucos livros de assuntos diversificados e incomuns.

Ela deve ser solitária. Imagino que seja, sim, mas não imagino bem a causa. Talvez ela não saiba conviver com o mundo, ou talvez o mundo não saiba conviver com ela. Ou talvez um pouco dos dois. Possivelmente, uma mistura desses dois. Por isso é só. Suas estatuetas de madeira devem ser as suas únicas e melhores companhia.

Tenho simpatia por essa senhora. Não só por ela me entreter e por eu achar divertido supor a sua vida imaginária. Simpatizo pela nossa semelhança. Pela nossa falta de adaptação a um mundo a qual não pertencemos e que não queremos pertencer. Somos iguais em nossos diferentes aspectos. Eu também tenho cabelos ridiculamente vermelhos, escondidos por um sóbrio tom de marrom.

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